O
ROUXINOL E A LÁGRIMA
A
tarde iluminada em tons de madrepérola anunciava o noturno, quando ouvimos cantar o rouxinol nas ruínas da
pequena ermida.
Como
um conserto de harpas angelicais, o canto daquela ave trazia-nos ao coração uma
mensagem de paz e harmonia.
Embevecidos,
escutávamos...
Então
o “rish” começou a narrar uma antiga lenda:
-
Há muito tempo atrás, certa avezinha que não sabia cantar vivia triste no
bosque, enquanto as outras aves escutavam em harmonioso gorjeios a alegria das
alvoradas e a tristeza dos ocasos.
Ao
vê-la infeliz, a fada do bosque segredou-lhe um dia, meio misteriosa:
-
Se beberes a lágrima milagrosa, aquela mais triste, entre todas as lágrimas do
mundo, poderás cantar, e teu canto simbolizará para sempre a harmonia da
Natureza.
-
Se assim for – exultou a ave – como serei feliz, então!
-
Não, pequena ave, porque teu canto jamais será compreendido neste mundo.
E
assim dizendo, a fada do bosque desapareceu entre a pétala de uma orquídea
branca.
A
avezinha, voou, pensativa...
Onde
estaria a lágrima mais triste que a faria cantar?
Lembrou-se
então de certa mulher, uma camponesa, que chorava inconsolável a morte do filho
único.
Deixando
o bosque, voou para a casa dessa mulher, onde pousou no telhado. Ouviu o som de
uma cantiga de ninar vindo do interior da casa. Era a voz da camponesa que
acalentava a um novo filho.
-
Já não há tristeza nessa voz... – pensou a ave. E voou para longe.
Talvez
– imaginava – a lágrima mais triste do mundo estivesse no olhar de uma criança
órfã. Certa vez vira um menino que perdera o pai e vivia tão infeliz que seus olhos fatigados pelo pranto,
perderam o brilho e cor, como boninas emurchecidas.
Procurou
a criança e encontrou-a sorrindo entre brinquedos, feliz, abrigada em novo lar.
Desanimada,
a avezinha voou para mais longe. Certamente jamais encontraria a milagrosa
lágrima de que falara a fada do bosque.
Enquanto
voava, ocorreu-lhe que talvez ela brotasse no olhar das almas sem amor, e com
isso renasceu em seu coraçãozinho a esperança.
Ouvira
falar de certa jovem que morria de dor porque seu noivo a deixara no último
inverno, e passava os dias ao pé de uma maciera onde recordava os instantes
felizes que ali vivera junto ao seu amado.
O
pequeno pássaro encontrou-a sob a mesma árvore, porém trocava juras de amor com
outro jovem.
- É
primavera – diziam as flores da macieira, a lembrar que os amores humanos
passam com as estações...
Voou
então para bem longe... ansioso de fugir a tudo, esquecer sua vidinha inútil,
sem poesia, sem a alegria das manhãs e tardes de sol.. Esqueceria mesmo seu
sonho de um dia cantar entre os pássaros... Voou em desespero, durante muito
tempo. Atravessou campinas e desertos, sobrevoou altas montanhas, até que
cansado, pousou nos galhos de uma oliveira. Percebeu, então que alguém falava
ali bem perto. Ouviu uma voz suave, diferente de outras vozes, que dizia
mansamente:
-
Vinde a mim todos os que sofrem... Todos os pequeninos...
Era
a voz do divino “Swami” que peregrinava pela terra a pregar o amor e a
esperança entre a multidão dos miseráveis.
-
Sou pequenino e sofro... – pensou a avezinha. E atraída pela voz, como todos os
tristes e sofredores, passou desde aí a acompanhar o “Swami” a toda parte. Se o
Mestre Divino caminhava em meio aos bosques perfumados de Jericó, ou nas
planícies da Samaria, perto dele voava a avezinha. Seguindo-o, pousava, ora
sobre um mastro das embarcações do mar da Galiléia, ora sobre os cedros do
monte Cinor.
Acompanhando
o “Swami”, aspirou o pó de muitas estradas, conheceu povos e cidades estranhas.
Percorreu vales e montes, sempre a seguí-lo, incansável, sem medir distâncias.
Ouvindo-o, esquecera as mágoas, compreendeu que, além de sua vida, havia
sofrimentos e dramas ainda maiores que o seu. Se não cantasse mais. Não lhe
importaria.. Importava conhecer o amor e a bondade como os ouvira ensinar o
“Swami”, desde Nazaré a Jerusalém, do monte Hermon ao Tabor.
Onde
estivesse o Mestre, ali estava a avezinha, pousada em alguma parte, a ouvi-lo
em silêncio... Seus pequeninos olhos, fitando a figura do Mestre, pareciam
entendê-lo mais que aqueles que o acompanhavam.
E
naquela tarde, a tarde do Sermão da Montanha, enquanto o “Swami” entoava o
cântico da misericórdia divina, o pequeno pássaro escutava-o em êxtase. A
folhagem dos sicômoros também
estremecera a ouvir a balada das bem-aventuranças, e um raio de sol
retardara-se no ocaso, esperançoso de ouvi-la.
Ao
soar a última nota do sublime canto, a avezinha chorava o doce pranto das almas
que encontram Deus...
No
entanto, a multidão que seguira o “Swami” até ali, já se dispersara. A maioria
viera em busca de alimento material, porque ouvira contar sobre a multidão de
peixes. Muitos, inclusive, partiram a murmurar impropérios e escárnios. Até
mesmo os discípulos do “Swami” tinham-no deixado naquele momento, sozinho sobre
o monte.
E
seu olhar de tristeza infinita e de infinita piedade, acompanhou a multidão
descendo a montanha, na pressa de satisfazer os apetites materiais.
Distante,
recortada entre os rochedos nus, sinuosa e íngreme, avistava-se a ladeira do
Sangue conduzindo ao Gólgota.
Além,
no monte das Oliveiras, perto da aldeia de Betfagé, delineava-se a silhueta do
Templo, fulgurante de ouro e mármore, esplendendo como a neve do Hermon sob o
sol.
Lá
embaixo, amontoadas e sujas, as casas do eirado de Jerusalém lembravam ninhos
de vespas.
E o
“Swami” estremeceu diante daquele cenário...
O
Getsêmani, o Sinédrio, a multidão a apedrejá-lo, a Cruz e o Calvário,
antecederam-se em sua mente. Sofreria até mesmo a negação de Cephas, seu amado
discípulo, o que haveria de entristecê-lo mais que a traição de Judas.
De
olhos no infinito, o doce “Swami” exclamou em angústia:
-
Oh! Pai, que eu beba até o fim o cálice das amarguras, mas que a Humanidade
aprenda a amar o amor pelo Amor...
Tristeza
indefinível envolvia o olhar do Mestre... Chegavam até ele, ainda, os insultos
e zombarias da multidão insatisfeita. Quando compreenderiam o cântico das
bem-aventuranças? E seu coração pulsava
pleno de piedade pelas fraquezas e misérias humanas...
Um
gemido escapou-lhe do peito, triste e doloroso, ressentindo toda a ingratidão,
incompreensão e abandono dos homens por quem breve ofertaria a vida...
Naquele
instante – conta a lenda – o pequeno pássaro, único que não se retirara do
monte, veio pousar, aflito, aos pés do Mestre, compadecido de sua dor.
Com
olhos ansiosos, o peito arfante, a avezinha parecia dizer ao amado “Swami”:
-
Não chores, divino “Swami”... Os
homens não compreenderam ainda o teu
cântico, mas as aves, quando estiveres junto ao Pai, o repetirão por toda a
terra. A Humanidade despertará um dia, e cantará, toda ela, o teu Evangelho,
alcançando a Harmonia e a Paz das Bem-Aventuranças.
O
“Swami” curvou a cabeça e fitou a pequena ave. Seus olhos estavam banhados de
pranto, e do olhar do Mestre uma lágrima caiu, trêmula, no bico da avezinha...
E
foi aí, então... diz a lenda – que a Natureza embevecida, ouviu pela primeira
vez o canto do rouxinol.
UM JARDINEIRO
Médium:
Dolores Bacelar
Fonte:
Livro:A Sombra do Olmeiro – Dolores Bacelar/ Um Jardineiro – Editora Correio
Fraterno
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