quarta-feira, 10 de junho de 2015

COELHO NETO - CARTA


CARTA


        AO SENADOR ÍNDIO DO BRASIL,  E     PELO
        MESMO, INCLUÍDA NO LIVRO DE SAUDADE,
        PUBLICADO EM MEMÓRIA DE  SUA    EXMA.
        ESPOSA  D. CLARISSE  LAGE   ÍNDIO      DO
        BRASIL.

                               4 de Dezembro, 1919.


Meu amigo.

Se o sol, quando tramonta, desaparecesse de todo, o mundo pereceria gelado. O calor do astro, sob a cinza da noite, é quem mantém a vida na sua continuidade perene.

Quem diz, falando de um ente extinto: morreu – nunca verdadeiramente o amou. Se na ausência entrasse o esquecimento andaríamos sempre a refazer a união, porque a vida é um ir e vir constante, como o das ondas. Mas para o verdadeiro amor o tempo é como o infinito, que se não mede, e nele vale tanto um minuto como as eras.

O amor, na sua verdadeira significação sublime, é o sentimento absoluto, e, como sentimento, é alma, sendo, por sua origem, imortal.

O que se quebrou na pedra do sepulcro foi o vaso de perfeição, a essência, essa impregnou-se-te nalma, fundindo-se, para o todo sempre, no teu próprio eu.

Quando a ouvias nas suas palavras carinhosas; quando lhe fitavas o olhar em que se refletiam as virtudes não era o vulto da mulher que te encantava, a forma humana, airosa como o lírio do Evangelho, mas o espírito, e esse não teve o túmulo, porque a sua voz ficou no teu coração ou no rumor, na claridade ou na treva, hás de ouvir a harmonia meiga que se abemolava para acariciar teu nome; hás de ver a luz doce que irradiava com a auréola da tua vida.

Assim ela vive, e, mais do que nunca, contigo, não mais em tua companhia, como tua sombra, mas em ti mesmo, como tua alma.

Deus, quando nos assoprou o seu espírito, deu-nos um pouco de eternidade e essa partícula divina, que em nós temos, chama-se memória. É como um ramo de folhas sempre verdes, em que se abre a flor imarcescível da saudade, cujo perfume é um filtro que nos transporta ao Passado e ressuscita os mortos.

Antigamente ela vivia num corpo e só te aparecia quando estava presente. Hoje, ela vive em tudo que te cerca: a tua casa, o teu coração, o espaço, as horas todas estão cheias dela.

O mundo tornou-se todo ele um espelho em que ela se reflete e, onde quer que teus olhos se fitem, aí verás a imagem adorada que te acompanha, como o próprio Deus onipresente.

Chorá-la? Porque? Nas lágrimas, desfazes o coração, que é o seu relicário e, gota a gota, vais diluindo a lembrança, que deve ser perpétua.

Conserva-a na tua saudade e quando, nos teus silêncios de esposo enamorado, quiseres vê-la volve sobre ti mesmo, olha para dentro de ti e hás de descobri-la fazendo na morte a caridade amorosa de consolar-te, como na vida – e não foi outra a sua missão na terra – mitigava piedosamente as dores dos pobrezinhos.

A imagem rolou do altar, mas a fé subsiste.

Eleva o coração, meu amigo, eleva-o bem alto, até Deus, e lá verás no esplendor etéreo, aquela que foi o amor, a doçura, o anjo do teu lar.


                               COELHO NETO


Fonte: Livro: Orações – Coelho Neto.

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